Bicho de Múltiplos Níveis (Ou “Hidra Marketing”)

Desde que o modelo de negócios envolvendo marketing multinível se fez amplamente conhecido (isto é, do grande público) no Brasil, lá pela alvorada dos anos 90, é impossível tratar do assunto sem acender o fogo de ânimos exaltados, tanto em defesa dessa modalidade de vendas, quanto no ataque à mesma. A rigor, mal o modelo se instalava por estas bandas, e já era alvo de polêmica – aqui, o MMN brotou com a controvérsia.

Mas por que razão não se pode dissociar o metonímico MMN – no mais das vezes, trata-se de fazer menção à Amway ou à Herbalife, que, ao menos entre os brasileiros, são os grupos mais conhecidos atuando neste nicho – de intempestividade, de ressentimento, de decepção? O mesmo calor não se faz sentir quando o tema da discussão é negócio de vendas diretas, modalidade conduzida pela Avon, ou Jequiti, por exemplo. Poder-se-ia dizer, redundantemente, que marketing multinível e venda direta são coisas distintas. Mas isso não apenas não explica a polêmica relativa a empresas como a Herbalife, como diz pouco sobre as diferenças entre os dois gêneros de negócio. Tecnicamente é possível reduzir a distinção entre os dois modelos de vendas ao fato de que em empresas como a Avon, o revendedor não percebe remuneração alguma pelas vendas fechadas por outros agentes de “sua rede” – se é que o termo é realmente aplicável.

Contudo, estabelecida a diferença primária entre os dois tipos de negócio, permanece a questão do motivo pelo qual marcas como Amway e Herbalife são irremediavelmente associadas a “choro e ranger de dentes”. Ocorre que não é difícil especular uma razão predominante – ou seja, acima da superfície de refração e desconfiança naturais com que via de regra idéias novas são recebidas, quanto mais quando próprio bolso está em jogo – para o aspecto controverso do negócio. O que salta à vista, é que transações de marketing multinível implicam necessariamente um grande número de adesões: a enorme quantidade de pessoas envolvidas é a razão de ser do modelo (naturalmente, posto que se as vendas fechadas por agentes em linha descendente, geram um percentual em dinheiro para o revendedor que encontra-se no topo da rede, então não serão equipes esquálidas que trarão lucro). E é justamente o caráter pantagruélico dos negócios de MMN, requerendo sempre mais e mais “adeptos” para se sustentar, que traz a reboque uma deformação, a qual, por sua vez, é a mãe de uma cascata de mazelas mais ou menos amalgamadas entre si, e que indubitavelmente constituem a gênese de todas as experiências mal sucedidas com as marcas em referência – a julgar pelos relatos fartamente disponíveis na internet e em outros canais de comunicação, sem contar os casos de pessoas conhecidas, cuja intimidade é testemunho inconteste de verosimilhança.

Ora, com tanta gente envolvida, e grupos tão fragmentados quanto relativamente independentes, fica difícil manter uma mesma linha de discurso, um mesmo padrão de qualidade – não dos produtos (eles estão fora de questão, aqui), mas do serviço, no que toca à abordagem, à prospecção, à propaganda.

Então, de um lado vemos proselitistas do estilo HerbaLife de ser, derramando aos borbotões, para quem quer ouvir (e, sempre que possível, para quem não quer, também) as delicias e bem–aventuranças do evangelho MMN; vemo-los escarnecer de quem trabalha 8 horas por dia, 5 vezes por semana – e isso, para auferir menos de 1/5 do que eles dizem conseguir como revendedores do grupo -, dizendo que espedaçaram o despertador a golpes de martelo, e mandaram os patrões às favas; enfim, alardeiam que hoje dispõem de mais tempo para viver, e mais dinheiro para gastar; por outro lado, testemunhamos gente que parece estar mais próxima daquilo que comumente se reputa por sensatez, advertindo que lidar com Herbalife, dá sim, muito trabalho, exige muita dedicação, e, enquanto complementação de renda, pode eventualmente, valer a pena. Ora vemos adeptos do negócio dizendo que qualquer um pode ser revendedor e ascender hierarquicamente no sistema; ora vemos outros revendedores advertindo que o esquema não é para todos, e apenas casualmente pode-se alcançar o mesmo patamar de conforto dos supostos “milionários” que aparecem nos vídeos promocionais. Tal esquizofrenia fica patente num destes vídeos, em que certo barão da marca (homônimo de um conhecido ator brasileiro), presumivelmente português – ao que parece, radicado no Brasil – afirma em tom categórico que o nível de dedicação ao negócio é alto, e, portanto, faz-se necessário trabalhar muito. Em outro take, contudo, ele aparece a bordo de um iate, ladeado pela esposa, que declara, deslumbrada, um patrimônio de tempo inestimável trazido pelo esquema MMN: “…ele agora tem tempo para os filhos, para a esposa…”

Não é por outra razão que o esquema de marketing multinível com frequência é associado à figura mitológica da Hidra de Lerna, monstro com corpo de dragão e, segundo consta, 7 cabeças de serpentes, independentes entre si. Na mitologia, a eliminação da Hidra constituiu um dos áridos Trabalhos de Hercules, que só conseguiu desempenhá-lo com a ajuda do sobrinho, Lolau, o qual, acudindo ao tio, cauterizava as feridas deixadas por este ao decepar as cabeças da Hidra, impedindo-as de regenerar-se – posto que, a cada cabeça cortada, surgia outra no lugar…No caso da Herbalife, são múltiplas as cabeças, mais ou menos agressivas, cada uma sustentando um discurso diferente, sendo que as que parecem rugir mais alto são as que oferecem, nestes discursos, espetáculos grotescos de constrangimento, aviltamento e estupefação – esta última “propriedade”, evidenciada pela estarrecedora transformação de conhecidos antes saudáveis, em arautos autômatos de olhos vidrados, empacotados em trajes sociais, laçados com gravatinha vermelha, babando na reprodução acefalada do discurso de grana fácil e ostentação de luxo, a anunciar um novo céu, e uma nova terra regada a bem-estar e abastança…

Não se pode dizer que, em si, o negócio de marketing multinível não seja legítimo. Os grupos envolvidos com este esquema de rede não obrigam ninguém a participar – verte atenção, dedicação, e sobretudo, dinheiro no esquema, quem quer. E não é demais lembrar, portanto, a presumida capacidade de discernimento de qualquer adulto que resolva trabalhar com Herbalife, Amway, ou qualquer outra marca do ramo. Não se pode atribuir à cupidez das empresas, a estupidez de pessoas que enxergam a relação direta entre lucro e o consumo próprio dos produtos das respectivas marcas, quando qualquer inteligência medíocre entende obviamente que o revendedor, ao consumir os produtos da empresa, gera um lucro que pertence tão somente…à empresa. Não se pode sequer acusar tais grupos de promover seus produtos sobre uma plataforma de propaganda de gosto duvidoso, que elege valores igualmente duvidosos – como a que consta nos videos de “encontros de carrões dos vendedores Herbalife”, nos quais, mancebos aparecem dando voltinhas pela cidade, de Porsche, Ferrari ou Lamborghini, posando ao lado destas máquinas com o polegar estendido e com cara de quem “vive para curtir a vida”. Numa sociedade em que, ao comprar um automóvel, a pessoa adquire não uma facilidade que a permitirá deslocar-se de A a B com conforto e segurança, mas sim a potência (na acepção mais generalizada do termo); o status social de uma marca cara; a capacidade de conquistar mulheres atraentes; numa sociedade assim, a propaganda de grupos dedicados ao MMN tão somente sublinha uma tendência. Por isso, não é de se estranhar o mal dissimulado desprezo por aqueles a quem tais valores significam pouco ou nada – desprezo tal, que aparece também destilado, por exemplo, nas palavras do já citado “chairman” (supostamente português) da Herba: “… há quem diga: ‘ah, eu não ligo pra dinheiro’; então tudo bem, você não vai ter dinheiro…”, e encolhendo os ombros reticentemente, deixa a assistência concluir que quem gosta de Herbalife deve gostar de ostentar muito dinheiro.

Pode-se, no máximo, combater ou rejeitar a inconveniência de certas “estratégias” de recrutamento e promoção, mais ou menos comuns entre os que lidam com este tipo de negócio, as quais, definindo de maneira generalizada, primam pela sofreguidão e insistência desmesuradas – mas nem essa característica pode ser impingida tão somente à modalidade de negócios de marketing multinível, haja vista varias outras atividades distinguirem-se pelos mesmos meios (embora, via de regra, de forma menos exótica).

O fato é que sempre há de haver aqueles mais apartados – por um ervanário de razões, desde as origens sociais ou familiares, até a dificuldade de reinserção, após anos de desatualização profissional – das boas oportunidades do mercado formal de empregos; ou ainda aqueles decepcionados com os altos preços e juros cobrados pela manutenção de uma posição neste mesmo mercado, em termos de dedicação (leia-se tempo); sempre há de haver aventureiros com tino comercial (ou, o que é mais freqüente, aqueles que acham que o tem), esperando apenas a oportunidade de uma virada financeira (para melhor) em suas vidas; sempre existirão jovens tão ansiosos quanto preguiçosos, de olho em qualquer chance de atalhar ao máximo o razoavelmente longo caminho entre a puberdade e a independência financeira completa (leia-se, passando ao largo da formação intelectual de qualidade, e da natural experiência que só os anos trazem). Portanto, hão de surgir sempre ondas sucessivas (a que pintou por aqui, lá pelo início dos anos 90 já era a terceira, segundo especialistas) de hidras de múltiplas cabeças, prontas a encantar hordas de potenciais adeptos como os elencados acima. E, na mesma medida, coexistirão uns arremedos de Hércules, sempre dispostos, entre um trabalho e outro, a decepar as cabeças do mito – mas sem sinal de Lolau algum por perto, para dar uma forcinha.

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